Algo está errado conosco. Foi o que conclui ao assistir Ashton Hall, um influenciador digital americano, viralizar ao compartilhar sua rotina matinal de quatro horas.

Tudo começa todo santo dia às 3h53 e termina às 9h, com a retirada das fitas que usa na boca e no nariz para dormir, mergulho do rosto em água gelada (da marca Saratoga), passada de casca de banana no rosto, muitas flexões e agachamentos, leitura de livros, idas - em carros de luxo - para pistas perfeitas de corrida, preenchimento de diário com as tarefas do dia, gravação de conteúdo com produção de altíssima qualidade e por aí vai.

O vídeo, editado com cortes perfeitos e trilha épica, passou de 100 milhões de visualizações. Em poucos dias, o Ashton alcançou 15 milhões de seguidores e a água que ele usa nos vídeos ganhou mais de US$ 600 milhões de valor de mercado.

A princípio, achei engraçado. Depois desceu quadrada a conclusão de que os números superlativos não dizem algo sobre ele - dizem algo sobre nós.

Algo está errado quando milhões param tudo para assistir - e acreditar - em alguém que “vence o dia” antes do nascer do sol. Algo está errado quando, mais do que reter a atenção das pessoas, esse tipo de performance se torna aspiracional.

Vivemos na era da Economia da Performance, onde mostrar que trabalho vale mais do que, de fato, trabalhar. E parecer saudável importa mais do que estar saudável. A verdade é que estamos cada vez mais exaustos, tentando parecer bem-sucedidos em tempo real.

O empreendedor que posta print de faturamento, mas não mostra os três meses sem vender. O guru fitness que aparece na banheira de gelo, mas ninguém vê o burnout ou o casamento em crise. O influenciador que vende uma vida mais consciente, mas vive “noiado” com a oscilação do algoritmo.

Eu mesmo já entrei nessa. Já fiz post sobre sucesso quando ainda estava tentando entender o que era sucesso. Já criei conteúdo de bastidor antes mesmo de ter um palco. E sabe o que eu aprendi?

A autenticidade não é só mais humana. É mais inteligente.

Quanto mais copiamos o impossível dos outros, mais nos envenenamos. E o antídoto é só sermos de verdade.

Quando você é real, constrói relações que duram. Atrai quem se conecta com quem você é, não com quem você finge ser. Ser de verdade faz com que você não fique nu em público quando a máscara cair, porque ela vai cair um dia. E ser de verdade tem mais a ver com imperfeição do que com perfeição.

O autor Malcolm Gladwell levou isso a sério. Com humildade, decidiu reescrever “O ponto da virada”, um de seus best-sellers, renomeando-o como “O outro lado do ponto da virada”. Fez isso porque a tese original, após 25 anos, mostrou-se errada.

Segundo Malcolm, assumir vulnerabilidades não é só o certo a fazer - é inteligente. As pessoas se identificam mais com quem é de verdade.

Os algoritmos dos feeds estão vencendo a batalha quando nos convencem de que são espelhos.

Conheço pais incríveis que se sentem fracassados porque não têm tanquinho ou uma casa com vista para o mar. Empreendedores brilhantes que se acham menores porque não têm jato ou Ferrari. Gente boa que se sente ruim ao se comparar com o que vê nos feeds.

A verdade? Quase tudo que parece perfeito na internet é só bem editado.

No visionário filme Matrix, que imagina um mundo em que todos vivemos dentro de uma máquina, o “déjà vu” é um erro no sistema. Um pequeno deslize que nos permite ver que estamos todos dormindo enquanto estamos sendo manipulados pelo sistema que nos convence de que aquela é a nossa vida real.

Esse artigo é, literalmente, um déjà vu. É como um despertador para nos acordar muito mais tarde do que 3h53.